O dia em que eu desmorri
Meu nome é Fúlvio. É um nome fictício, claro, não vou revelar a minha identidade. Eu tinha vinte e oito anos quando eu morri. Rárárá, brincadeira! Eu não morri não, é que eu sempre quis começar a minha estória assim. E sempre quis escrever estória no lugar de história. Bom, tecnicamente eu morri, mas na prática eu não morri. Para os leigos não ficarem tão curiosos, esclareço: eu fiquei morto por nove minutos. Durante nove minutos, meu coração parou de bater. E o pior é que eu não estava preparado pra morrer. Era uma cirurgia boba, pra tirar uma verruga do pescoço. Eu, medroso como sempre fui, pedi logo anestesia geral pra não sentir dor. E não senti. Parece que eu tive alguma reação à anestesia e simplesmente meu coração parou. Durante nove minutos.
Querido leitor, se você acha nove minutos pouco, tente ficar nove minutos olhando para o nada. Ou tenta ficar nove minutos ouvindo uma música dos Los Hermanos. Aí sim você vai perceber a eternidade em que nove minutos podem se transformar. Mas como eu já adiantei lá em cima, depois de nove minutos, meu coração voltou a bater e eu “revivi”. Meu rosto já estava até tampado com um pano, que nem defunto. A primeira coisa que eu ouvi foi o médico falando: “enfermeira, manda a assistente social avisar à família”. A segunda coisa que eu percebi foi que eu ainda estava com a porra da verruga no pescoço. Trágico.
Em poucos segundos minha mãe e a Flora, minha namorada, entraram na sala. Nesse momento eu ainda não sabia o que tinha acontecido. Ouvi as duas chorando, mas foi aí que aconteceu uma coisa estranha: ouvi a Flora, de costas, falando: “Merda, vou ter que desmarcar com o Tony”. Nesse exato momento eu acordei completamente e, depois de nove minutos morto, minha primeira frase ao reviver foi: “Quem é Tony, Flora?”. Logicamente que como um sujeito que acabou de voltar da morte no quarto, ninguém deu atenção pra minha pergunta e todos vieram me paparicar. Só pra vocês não ficarem curiosos, meu namoro com a Flora já não estava bem e dois dias depois de eu voltar à vida ela me largou, e eu fiquei sabendo por um amigo em comum que Tony era o professor de Zouk dela, de quem ela era amante há alguns meses. Mas voltemos à minha volta da morte.
Assim que eu voltei eu notei que tinha alguma coisa estranha. Achei estranho a Flora falar aquilo alto. E eu também estava ouvindo umas vozes, como uma multidão, mas o médico disse que era efeito do sedativo. Mas eu só tive a certeza do que estava acontecendo quando ouvi o médico falar, sem abrir a boca e de frente pra mim: “Puta que pariu, ainda bem que ele voltou, senão eu ia perder a minha cesta de Natal”. Eu estava ouvindo pensamentos! Eu conseguia ler a mente de todo mundo! Ouvi a minha mãe pensando: “Mas podiam ter tirado essa verruga, né?!”. Ouvi a enfermeira pensando sacanagem com o operador de raio X. Ouvi o paciente do meu lado triste porque a minha namorada ia embora, e que o boquete dela era o melhor que ele já havia ganhado. Pelo menos ele não dançava Zouk. Mas eu só fiquei nove minutos morto, deve ter sido um boquete relâmpago. Enfim.
Voltei pra casa – ainda com a verruga no pescoço – e percebi que aquilo de ler mentes podia vir a ser muito útil. E como bom brasileiro, a primeira coisa na qual eu pensei foi em: levar vantagem. Se fosse em Las Vegas eu teria ficado milionário em uma semana, mas como no Brasil o jogo é ilegal, deu mais trabalho. Pesquisei e encontrei uns cassinos clandestinos aqui no Rio de Janeiro. E jogando pôker e sabendo o que todos tinham nas mãos, em um mês eu ganhei trezentos mil reais.
Mas – Brasil, sabe como é – ao fim do primeiro mês eu levei uma surra dos seguranças de um dos cassinos, fui proibido de entrar nos outros e ainda levaram parte da minha grana. E pra completar, fui sequestrado no dia seguinte por um cara que só dizia:”eu sei que tu ganhou dinheiro pra cacete nos cassinos, playboy!”. Mas eu já tinha comprado um carro e gastado dinheiro pra cacete em puteiro, tinha sobrado pouco. No fim das contas li a mente dele e descobri que ele só precisava de dinheiro pra pagar a operação de mudança de sexo do namorado – o Fred. Convenci ele a ligar pro Fred e deixar eu falar com ele. Sabendo o que ele pensava, não foi difícil convencer ele a não fazer a cirurgia, principalmente porque, como homem, ele não precisa sentar pra mijar em banheiros de rodoviária. Ele concordou, claro. Aí só emprestei trezentas pratas para eles passarem a lua de mel em uma pousada na beira da praia em Iguaba e fui liberado.
E depois de um mês ganhando no jogo, eu agora só tinha um carro caro e quinhentos reais no bolso. Resolvi virar vendedor de uma loja de luxo feminina. Em dois meses eu era o melhor vendedor de toda a rede, no mundo. Eu sabia o que as mulheres queriam, fazia elas saírem da loja com bolsas e mais bolsas. Eu era o astro da loja, as mulheres entravam direto pra falar comigo e saíam mais felizes do que mulher ouvindo que tá mais magra. Mas aí eu cansei. Cansei de bajular madame só pra ela comprar um cinto Dior de três mil reais. Cansei, peguei a grana que tinha ganho e me demiti.
Eu pensei em virar vidente. Ia ser fácil, lê a mente da pessoa, vê o nome de alguém querido que morreu, dizer que a pessoa está feliz, falar que a pessoa tem um futuro brilhante pela frente e pronto, todo mundo fica feliz. Mas eu sou um homem de caráter. Mentira, é que eu tenho medo de fantasma. E depois disso tentei ser de tudo, mas nada dava certo. Meu dom parecia mais uma maldição. Durante cinco meses eu fui mágico no centro da cidade. Adivinhava cartas, palavras, coisas que as pessoas estavam pensando etc. Até que um dia levei uma surra de um sujeito quando disse que ele estava pensando no Anderson Silva nu. Ele achou ofensivo e me deu uma surra. E enquanto me batia, ele pensava no Anderson Silva, nu, apanhando dele, e depois pedindo um abraço de desculpas. As pessoas têm medo de assumir o que elas pensam.
Então, um dia recebi um folheto de uma igreja e resolvi: vou largar tudo. Larguei a porra toda e entrei pra um convento, estava decidido a virar padre. Desisti em duas semanas. Vocês não fazem ideia das coisas que passam na cabeça dos padres. O pior é que hoje em dia eu não posso mais ir à igreja porque depois de tudo aquilo eu nunca mais tive coragem de beijar a mão de um padre. E depois de muito pensar, decidi o que faria com o meu dom. E há dois anos eu sou feliz e vivo muito bem com esta dádiva que Deus me deu. Hoje eu tenho uma pizzaria e sempre adivinho a pizza preferida de cada cliente. O restaurante vive cheio.
Comentar sobre O dia em que eu desmorri