Toda relação tem um picles
Enquanto a água quente colidia contra minhas costas, eu pensei em pedir para que ela tentasse ser uma pessoa mais bem-humorada de manhã. Porém, assim que saí do banheiro e a avistei com cara de sono, braços cruzados e expressão de criança contrariada, por medo de iniciar um quiproquó de assustar a vizinhança, apenas perguntei se ela queria uma carona até o trabalho. “Sim”, ela me respondeu; curta e grossa.
No carro, ela não disse nada. Nem sequer sorriu. Pensei em parar numa farmácia e sugerir que ela injetasse Maracugina na veia. Mas por conhecê-la, sabia que ela poderia roubar a seringa do farmacêutico e cravá-la bem no meio do meu pescoço. Por isso, nem abri a boca. Apenas sintonizei em uma rádio qualquer e torci para que não tocasse Legião Urbana.
Depois de ela bater a porta do meu carro com força, pedi ajuda ao Google. Precisava saber a opinião da ciência sobre aquele comportamento, no mínimo, assustador.
“Já existe desculpa para o mau humor matinal das mulheres”, afirmava um artigo. Desculpa? Só me faltava essa! Senti raiva daquele site e da pseudociência usada para explicar os caninos à mostra da mulher que eu amo muito mais a partir das 10h00 da matina.
Imaginei-me casado com ela e, todo santo dia, acordando com medo de ter o pênis decepado enquanto passo manteiga no pão. Senti calafrios. Pensei em propor um novo modelo de namoro, no qual eu só a veria no período vespertino e noturno. Logo desisti, soou demasiadamente burocrático e inviável. Então, tive uma ideia que me pareceu razoável: numa folha de caderno coloquei os pontos positivos e negativos da moça que, às vezes, parece possuída pelo demo.
Passei o dia todo encarando aquela folha que mais parecia uma analise SWOT. De um lado uma infinidade de motivos que me faziam sorrir e ter vontade de estar com ela; de outro, a dificuldade de expressar certos sentimentos e, claro, o tal “encapetamento” matinal.
Pensei. Tomei café. Pensei. Comi castanhas de caju compulsivamente. Pensei… E não apenas nela: pensei também em mim e nas muitas coisas que ela precisava aguentar em minha personalidade nada fácil. Lembrei-me das vezes em que eu deixo tudo bagunçado; recordei-me dos dias em que, por teimosia crônica, contrario-a até a exaustão.
“E se ela também fizesse a análise dos meus prós e contras, como seria?”, pensei. “Será que, assim como os dela, meus pontos positivos superariam os negativos?”.
Bastou para notar que aquelas patadas matinais eram insuficientes para que eu desistisse daquela que me deu os melhores conselhos, abraços, beijos, orgasmos e colos. Nem mesmo aquela recorrente cara de emburrada é capaz de me fazer abrir mão das caretas que ela faz para me ajudar a esquecer das inevitáveis tragédias do mundo, concluí. E em vez de continuar tentando mudá-la, nos dias em que ela acorda amedrontadora, eu invento coisas para fazer na rua e só volto cerca de duas horas depois, quando ela já tirou o dedo do gatilho e voltou a ser um anjo apaixonante.
Muitos dirão que é uma atitude covarde. Eu, por outro lado, acho que para prolongar a convivência com aqueles que amamos precisamos nos adaptar àquilo de bom ou ruim que eles carregam. Lógico que precisamos colocar as coisas na balança, pois, em muitos casos, partir pode ser bem mais interessante do que ficar. Só não podemos nos esquecer de que os relacionamentos, por mais gostosos que possam parecer em nossas projeções utópicas, sempre possuem um quê de Mc Lanche Feliz: além das gostosuras que queremos repetir, carregam também alguns picles. Em alguns casos, é possível tirá-los com um simples pedido. Em outros, no entanto, aceitá-los é o melhor que podemos fazer para evitar confusão.
Além do mais, a perfeição eu deixo para as pessoas fictícias de Hollywood. Pois na vida real até os mocinhos têm dias de vilão.
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