O heróis do óbvio
Viver em sociedade é saber conviver com os contratos implícitos e não ditos entre as pessoas. Um deles é que, se você defende ou pratica algo tido como ruim, ou criminoso, você não sai por aí alardeando isso, pois seria socialmente inaceitável. Mastigando: se você tem um comportamento sexual normal, ok, saia por aí falando para todo mundo. Mas se você é um necrófilo, melhor guardar isso para si ou dividir com as pessoas que compartilhem da sua prática. Isto posto, vamos ao assunto do texto de hoje: os heróis do óbvio.
O Herói do Óbvio é alguém que se torna um herói, por defender o óbvio. Sabe aquela pessoa que escreve um texto de vinte linhas, e algumas exclamações, em uma rede social se dizendo contra a morte de focas bebês com porretes com pregos nas pontas, e defendendo – olha o óbvio aí – o direito à vida das focas bebês? Esse é um Herói do Óbvio. Ele defende veementemente algo que qualquer ser humano dito normal defenderia. Esse tipo de defesa não é uma virtude, é uma obrigação. Mas mesmo assim as pessoas comentam e o festejam tal qual um escravo negro subindo em um palco no Rio de Janeiro de 1700 para defender a abolição da escravatura. Não, ele só defendeu algo que, em público, nunca será contradito. Ou vocês imaginam alguém fazendo um post de vinte linhas, e algumas exclamações, defendendo o nobre esporte de matar bebês focas com porretes cheios de pregos?
Um exemplo recente foram os salvadores do mundo criticando o ato de divulgar fotos e vídeos íntimos, depois que algumas meninas se suicidaram ao terem suas intimidades expostas. Agora me digam: qual o mérito heroico e extraordinário de se defender isso? Nenhum! Defender a intimidade de alguém é algo básico, quase uma obrigação de um bom cidadão. E vi várias pessoas que defendiam isso sendo exaltadas e bajuladas como se fossem aquele rapaz que parou na frente do tanque na Praça da Paz Celestial, na China. Alguém em sã consciência defenderia que vídeos íntimos devem ser divulgados e as meninas é que são culpadas? Por mais que alguém pense assim – e sempre tem quem pense – ninguém é idiota o suficiente de expôr isso em uma rede social. Logo, defender o contrário é, mais uma vez, o óbvio.
É incrível como as pessoas são carentes de representantes. Qualquer paspalho que defenda em público qualquer ideia minimamente óbvia já é recebido com honras de herói de guerra. Vejo pessoas criticando o machismo, o estupro, o racismo etc, como se essas fossem bandeiras muito difíceis de serem hasteadas, e não bandeiras óbvias que não precisariam nem de defesa, só de bom senso. Se alguém escreve alguma teoria ou pensamento diferente sobre algum desses assuntos, oquei, porque ele acrescentou algo ao assunto. Mas simplesmente defender bandeiras óbvias e ser canonizado por isso é uma prova de que as pessoas são realmente muito carentes de “heróis”.
Mais triste é ver essas pessoas sendo apontadas como bastiões da moralidade e do bom senso, quando o que elas fazem é tão somente concordar com algo que, publicamente, é “indiscordável”, com o perdão do neologismo. E há pessoas que surfam nessa onda por muito tempo, com uma sucessão de opiniões óbvias defendendo o que não tem como não ser defendido. E essas pessoas se acham realmente heróis, bravos, corajosos e contestadores, defendendo causas dificílimas de serem defendidas, como o direito à vida de bebês focas, o direito – absurdo – dos negros de não serem vítimas de preconceito ou o direito das mulheres de não serem agredidas, vítimas de preconceito ou estupradas. Afinal de contas, haja coragem para se defender uma coisa dessas! Viva os nossos heróis!
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